O golpe da “chatbot music”
Roger Marza
Wall-E, o simpático robô da animação da Pixar, ouvia música e adorava! Ele tinha uma fita VHS (ou talvez um arquivo digital) do musical “Hello, Dolly!” e assistia repetidamente às cenas das músicas “Put On Your Sunday Clothes” e “It Only Takes a Moment”, imitando os gestos românticos dos personagens. Que músico não gostaria de alegrar o coração desse ser artificial, que sente solidão e até se apaixona?
No entanto, a realidade do streaming digital traz um cenário bem mais estranho para os músicos, no qual as máquinas não ouvem nossa música por prazer e sentimento. Pela segunda vez em menos de três meses, uma música minha foi incluída em uma playlist que, ao que tudo indica, era impulsionada por robôs. Na primeira vez, a música escolhida foi “Water Soul“, do meu primeiro disco Alma da Terra (2021).
“Water Soul” é uma improvisação de sax alto ao som de baleias jubarte, cachalote e golfinho pintado do Atlântico, fornecidos pela ONG Som de Oceano. À época, entrei em contato com a distribuidora Tratore, que me indicou um link para denúncia no Spotify. Relatei o caso e, em resposta, conversei com alguém – ou ao menos parecia alguém real. Difícil dizer se não era um chatbot.
Ouça Water Soul – https://youtu.be/j9o_KDM0m7M?si=yTTsCtkR4Ifz-b8D
Dessa vez, a música escolhida pelos meus amigos de bits and bytes foi “Beeple’s Time”, o que me deixou ainda mais intrigado. Essa faixa, lançada no álbum Chuva de Oceano (2021), destoa da minha pegada de música para relaxar. “Beeple’s Time” é um experimento artístico doidinho inspirado no artista digital Beeple (Mike Winkelmann), cuja obra “Everydays – The First 5000 Days” foi vendida como NFT por US$ 69 milhões.
Em julho daquele ano, gravei uma improvisação livre por cinco dias seguidos e, ao final, montei uma “colagem” sonora, criando um conceito semelhante ao do artista. E, para o vídeo, reuni os rabiscos que adoro fazer livremente para ilustrar algumas de minhas músicas nas redes sociais. Um dos rabiscos, inclusive, virou a camiseta Beeple´s Time, na minha loja na Uma Penca.
Ouça a Beeple´s Time: https://www.youtube.com/watch?v=Ze5AE4mNlHA
A surpresa veio ao notar que, em dois dias, meu número de ouvintes saltou para mais de 700, com “Beeple’s Time” fervendo neurônios – ou seriam transistores? Como orientado pelo suporte do Spotify em dezembro, aguardei alguns dias para observar a movimentação dos ouvintes. E então, de repente não mais que de repente, a playlist simplesmente desapareceu.
O Spotify disponibilizou um canal para que artistas denunciem playlists suspeitas. Isso porque, além de remunerar mal os músicos, a plataforma agora está retirando aqueles que usam serviços de plays artificiais. Empresas vendem esse tipo de serviço na internet, e há quem pague por isso. Para dar um ar de autenticidade, essas empresas incluem na play list diversos outros artistas, sem autorização e talvez com o intuito de incentivar novos negócios. Mas e aqueles que são incluídos sem saber, numa parada ilusória? Quem cuida desses casos? A gente tem que ficar investigando playlists a todo momento, sob a mira da afiada espada de Dâmocles e sem qualquer aviso?
Segundo a advogada Patrícia Peck Pinheiro, CEO do Peck Advogados, escritório especializado em direito digital, a plataforma é responsável por garantir segurança em seu ambiente. “O próprio Spotify coíbe a criação de audiência artificial em seus termos de uso. Portanto, os músicos que agem corretamente e que se sentirem prejudicados pela inclusão de suas músicas de forma inadvertida em playlists robôs, devem fazer a denúncia junto à plataforma. Dependendo do caso, se identificada inércia ou negligência da mesma, podem tomar as medidas cabíveis para ressarcimento de danos e prejuízos causados. O uso de manipulação artificial é prejudicial para todo o mercado, transparência é fundamental nas relações entre artistas, indústria musical, consumidores e anunciantes”, afirma Patrícia, em consulta ao Blog do Marza por Whatsapp.
Os artistas devem investir na divulgação de seu trabalho de forma honesta de um lado e, por outro, lutar em grupo para pressionar as plataformas de streaming a melhorar a remuneração pelos plays e evitar os constrangimentos de serem incluídos em programações musicais artificiais. Impulsionar artificialmente uma música não faz sentido. Os artistas precisam se organizar para lutar por melhor remuneração grandes redes sociais. Além disso, investir em outras plataformas, com a Bandcamp, por exemplo.
É preciso ter em mente que não é o YouTube ou o Spotify que vão garantir o leite das crianças, mas que são meios para colaborar no relacionamento com ouvintes para a realização de shows, meditashows e eventos. Como dizem os mais jovens: “é sobre isso”. Não duvido que, no futuro, os chatbots poderão desenvolver as subjetividades que tornam o robô Wall-E tão especial, mas até lá, vamos pensar em levar nossa música para elementais, plantas, animais e seres humanos?
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