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O último crochê de Yolanda

O último crochê de Yolanda

Já era início de dezembro de 2024 quando Yolanda fez a sua primeira resolução de fim de ano. Prestes a completar 94 anos, ela se sentia um pouco cansada. Não apenas porque suas pernas não eram mais as mesmas da mocidade, muito menos porque seus olhos exigiam o uso de óculos “vidro-de-garrafa” tão poderoso quanto o telescópio espacial James Webb. O fato é que viver quase um século lhe dava o peso da ignorância humana, que lhe parecia imutável.

Nascera em 1930, em meio à luta pela conquista do poder por Getúlio Vargas; sentiu nos ares a revolução de 1932, a revolta dos velhacos da velha política paulista; viu um primo voltar da Itália após a campanha do Brasil na Segunda Guerra Mundial completamente transtornado, irreconhecível; viveu sob o governo de Eurico Gaspar Dutra (1946 a 1951), um dos piores momentos que sentiu na pele. “Votou no Dutra? Come polenta crua, seu filho da pXta!”, lembra ela sobre o “meme verbal” que se ouvia naquela época em decorrência da falta de alimentos sob o governo deste distinto militar.

Vixe, tanta coisa ela viu! A morte de Getúlio que, para o brasilianista Tomas Skidmore adiou o Golpe de 1964 em dez anos, e que levou o seu marido à prisão na década de 1970, porque ele era ligado ao movimento sindical têxtil. E, até hoje, é obrigada a ouvir dos genros como era bom viver sob a Ditadura, obviamente todos eleitores de Bolsonaro. Essas pobres almas errantes, ela as entendia…  Elas se cansaram da manipulação da mídia tradicional, mas acreditam como patinhos feios nas Fake News da extrema direita. Mal sabem que pularam da frigideira direto para o fogo. A interpretação de texto é capaz de salvar vidas!

Em todas as fases difíceis da vida, Yolanda buscava no bordado uma forma de conter a ansiedade, uma maneira de ocupar a mente. “Quem faz crochê vive mais de cem anos, eu vi isso numa pesquisa que fizeram”, conta a senhora de olhos verdes cativantes e pele de pêssego, reflexo de uma vida cujos únicos excessos eram bolos e doces que adorava fazer. Ao longo do tempo, fez camisa de crochê, capinha em forma de galo para colocar no bico do bule, colchas de casal e de solteiro, fronhas de travesseiros, entre tantas coisas.

Mais recentemente, ela produzia toalhas de mesa, que ganharam fama em seu bairro. Dona Hercília ficou sabendo e espalhou a notícia nas cercanias. Dona Yolanda, querida por todos no bairro, ficou radiante. Pedia à filha que trouxesse de São Paulo as linhas para dar vazão à produção. A Cleide lhe questionou na feira livre que era a única do quarteirão que não tinha uma toalha de mesa de crochê. Pois Yolanda criou uma para a amiga também.

Mas, como ela passou a vida na fábrica de tecido e nunca podia saber o destino das peças que ajudara a fabricar, Yolanda resolveu visitar suas obras, uma a uma. Todas essas peças ela produziu com amor, sem cobrar nada. Cada ponto de linha representava um momento de sua vida, ainda mais sofrida devido à uma filha que tomou um ácido na década de 1970 e que, até hoje, não havia voltado da viagem lisérgica.  

Tratou de visitar Dona Hercília, que a recebeu com chá e bolo de fubá. Espanto geral teve Yolanda ao saber que sua amiga nunca havia estendido o seu crochê na mesa. “Ah Yolanda, é tão bonito, não quero estragar…” O mesmo se sucedia com as outras amigas do bairro. A Cleide foi a única que usou, mas colocou por sobre o crochê um plástico horrível, para não sujar. “Mas eu explico que, para lavar, é só não torcer, que não tem problema”, dizia Yolanda.

Em meados de novembro, o neto lhe pediu uma toalha de crochê para dar de presente à mãe de sua namorada. Meio triste, Yolanda perguntou o que sua filha havia feito com o crochê de mesa que lhe presenteara no ano passado. “Ah vó, está guardado. Mamãe que manter viva essa memória da senhora.” E isso foi o pingo d’água que faltava em seu fino equilíbrio da Melhor Idade.

Enrolando com energia fios de várias cores, criando algumas vezes estrelas, outras formas abstratas que atraiam os olhares como buracos negros, puxando linhas aleatoriamente em fiapos, Yolanda fez a toalha de mesa mais louca de sua história. E a entregou em um embrulho gigante para o neto, ordenando que só fosse aberto perante a mãe de sua namorada, que por ironia do destino era curadora de arte contemporânea da Casa de Cultura do Parque, em São Paulo. Sem saber, Yolanda chegará em 2025 como artista, posição muito merecida uma vez que nenhum de seus crochês de mesa tiveram a utilidade que ela tanto sonhava. Agora, eternamente, será Yolanda.

Que o seu 2025 seja pleno de vida… e “inútil” aos olhos da sociedade, porém repleto de simbologia de amor, paz e comunhão!

(Leia o conto também no Blog do Marza)

Roger Marza

Jornalista e Músico

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